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Direito e gênero como matéria obrigatória nas faculdades de Direito do Brasil

Confira artigo publicado no Estadão, de autoria da associada Mariana Bazzo, Promotora de Justiça do MPPR e Diretora de Apoio aos Grupos de Estudos da APMP; e Gabriela Manssur, Promotora de Justiça do MPSP
15 de janeiro de 2021

Numa certa audiência de processo criminal, o advogado levou testemunha de defesa para dizer que a vítima de suposto crime de estupro não era uma menina boa como parecia, pois usava shortinho e fazia postagens sensuais na internet. Num outro dia, numa outra audiência, outro advogado levou testemunha de defesa para dizer que a vítima – de crime de ameaça com arma de fogo pelo ex-marido – era uma vagabunda que sempre saiu com vários homens após a separação e nunca se sustentou. Cenas como essas são diárias para aqueles (as) que trabalham no Sistema de Justiça, ainda que pouco acessíveis ao público, por conta do segredo de justiça que envolve a maioria dos processos que apuram crimes contra mulheres. Contudo, a partir do caso “Mariana Ferrer”, recentemente divulgado pela mídia, mais do que nunca, a sociedade se abre para o debate necessário: como combater o machismo institucional que fere (pela segunda vez) direitos de mulheres vítimas de crimes?

Como forma de solução do problema, surgem opiniões e iniciativas relacionadas a mudanças legislativas, a exemplo do PL 5091/20 (Câmara dos Deputados), que busca a criminalização de violência institucional, ou a punições dos juízes e promotores perante órgãos correicionais, tais como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público.

Contudo, a intenção do presente e breve artigo é reafirmar uma outra alternativa preventiva e mais que urgente no cenário brasileiro: a obrigatoriedade dos estudos de Gênero em todas as Faculdades de Direito do país. A perspectiva de uma formação nesses moldes para todos (as) os (as) integrantes do Sistema de Justiça já é dispositivo legal previsto no art. 8º da lei Maria da Penha e louváveis são ações já desenvolvidas, havendo destaque para recentes recomendações do CNJ (n. 79/2020 com alterações da n. 82/2020) e do CNMP (n. 79/2020) que tornam obrigatórias capacitações em gênero para magistrados (as) e promotores (as) de justiça. Entretanto, ainda é lacunar essa formação justamente nos locais dos primeiros contatos de homens e mulheres com o Direito em sentido amplo, que seriam as salas das universidades.

Não há determinação de obrigatoriedade da matéria Direito e Gênero nos cursos jurídicos de universidades particulares ou públicas do Brasil, sendo ainda escassas as ofertas da disciplina como optativas ou mesmo em nível de pós-graduação. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, avaliada com nota máxima pelo MEC, a disciplina “Direito e Equidade de Gênero”, foi ofertada, em parceria com a UNESP, no segundo semestre do ano de 2020.

Muito diferente é o cenário do Brasil se comparado a outros países, onde essa matéria recebe relevância há muitas décadas. Basta se observar os relatos bibliográficos da Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, Ruth Barder Ginsburg, falecida no último 20 de setembro de 2020. Essa importantíssima ativista, desde a década de 70, ministrava aulas sobre Direito e Gênero nas universidades americanas.

Com início no século XX, em que as mulheres conquistaram direito ao voto (1932) ou a capacidade civil plena (1962), a expressiva e recente evolução legislativa que protege direitos humanos dessa parcela da população, ganha, no século XXI, destaque no âmbito da proteção das vítimas de violência (Lei Maria da Penha em 2006, Lei que altera o Código Penal em 2009 para proteção da dignidade sexual da mulher, Lei do Feminicídio em 2015, Lei que cria o crime de importunação sexual em 2018, entre outras). Hoje, não raramente, o maior número de processos de varas criminais é o relacionado a esses crimes, principalmente os que envolvem violência doméstica e familiar.

A melhor forma de compreensão e concretização dos recentes avanços de direitos humanos de mulheres se dá pela educação, muito mais que pelas sugeridas vias punitivas de (infelizmente) diárias violências institucionais. No âmbito do Direito, somente a obrigatoriedade de estudos de gênero que permeiem as demais matérias tradicionalmente ofertadas, principalmente o Direito Penal, possibilitará a derrubada de preconceitos que prejudicam a justa análise de processos, conduções de audiências, atendimento ao público e mesmo a própria aplicação de tantas novas leis da temática da igualdade de gênero, que, teoricamente, estariam disponíveis para a proteção de mulheres vítimas de violência e não para novas ofensas de seus direitos praticadas por agentes que integram um nitidamente ainda machista e ignorante Sistema de Justiça.

*Mariana Bazzo, promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná e autora do livro ‘Crimes contra mulheres’.

*Gabriela Manssur, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo.

Fonte: Estadão.

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